quarta-feira, 31 de março de 2021

"Associação"

 De repente os olhos interrompem a leitura e o meu pensamento viaja ...eu já ouvi isto antes, aconteceu de verdade....

Fiquei imaginando dona Felicidade jovem, aboletada na garupa da égua que Zé Coelho conduzia, agarrada à sua cintura se embrenhando no meio do mato, o que será que pensou naquele momento ? Talvez o que lhe ocorresse era a insegurança do que estaria por vir, havia acabado de ser entregue à própria sorte pelo irmão mais velho em troca de uma única cabeça de gado, era o que ela valia.

Chegaram numa tapera feita de pau a pique, com certeza haveriam frestas nas paredes e no telhado por onde entravam os raios de sol e a água da chuva, um colchão de palha seca com lençóis imundos, um candeeiro, uma pilha de tijolos que servia como fogão à lenha, talvez uma panela ou duas pretejadas pelo uso, um balde velho carcomido, uma moringa de barro, em volta do barraco um terreiro cheio de entulho recobertos pelo mato, não havia limites entre o quintal e a mata fechada.... continuei imaginando sua aflição, como teria sido sua primeira noite com aquele homem mais velho de quem pouco ou nada sabia, além de que era viúvo com três filhos pequenos aos cuidados de terceiros.

 O repúdio que sentiu àquelas mãos lhe subindo à saia, o peso daquele corpo suado penetrando suas entranhas, o galope frenético, com certeza seus olhos estariam fixos, iluminados pela luz do candeeiro, inertes sem emoção, até que ele chegasse ao gozo e ela finalmente se virasse livre para repousar e dormir, com as lágrimas lhe correndo a face mas, consciente do dever de mulher cumprido.

Felicidade era uma fortaleza, cuidou da tapera, lavou os lençóis, areou as panelas, limpou o terreiro com um facão, foi uma cozinheira de mão cheia, cuidou dos filhos que não eram seus, cuidou dos dois filhos que pariu, cuidou de Zé Coelho até o fim dos seus dias.

É, por associação concluo que histórias de livros acontecem muitas vezes na vida real, ouvi muitas delas reproduzidas por minha mãe as quais lhe foram confiadas por minha avó, dona Felicidade.

Sua história, bem contada, daria um livro, mas quem sou eu para me atrever ?! por hora retomo minha leitura......


segunda-feira, 29 de março de 2021

"5ªJ"

 Toda vez que termino uma leitura me sinto inspirada à escrever, dia desses finalizei o livro "Tempos de Escola", uma coletânea de contos, crônicas e memórias de autores diversos.

Fiquei impressionada com as narrativas e concluí que mesmo com distanciamento da realidade física entre os séculos, os anseios, os medos os sonhos de toda criança são muito parecidos mesmo nos dias atuais.

Tenho a memória curta enquanto aluna, são poucas lembranças do meu tempo de escola em compensação armazenei inúmeras passagens no papel de professora.

Uma delas aconteceu em meados da década de 90....

Eu não sei de quem foi a infeliz ideia de juntar os piores alunos de cada sala em uma única turma, a famosa e temida 5ªJ

Uma sala aparentemente pequena e inofensiva, mas qual !!!!!! Eram doze alunos, ou melhor,  doze meninos/homens cujas idades variavam entre os quatorze e dezessete anos, naquela época não havia a promoção automática e a reprovação os obrigava a permanecer na mesma série ano após ano.

Os piores em todos os sentidos, não havia respeito, educação, interesse em aprender, motivação, nada que os fizesse acordar pra vida.

Compulsoriamente para os professores mais novos foram atribuídas as aulas com a desafiadora tarefa de "domesticar as feras".

Toda aula havia uma ocorrência relativamente grave, certa vez enquanto o professor de Geografia escrevia na lousa, alguns alunos debandaram pelo corredor da porta acobertado pelos demais e saquearam a cantina da escola, voltando vitoriosos com as guloseimas roubadas e distribuindo entre os comparsas numa tremenda algazarra, enfim já não havia mais espaço no caderninho preto onde todos eram fichados e, mesmo que houvesse, aquilo não mais os intimidavam.

O que me restava antes de entrar naquela sala era rezar vinte padre-nossos, trinta ave-marias, me benzer, respirar fundo, afiar as ferraduras, fechar a cara estufar o peito, precisava antes de tudo me armar de coragem para encará-los de frente e assim pisando duro e disfarçando o medo adentrei à jaula dos leões famintos.

Pelo silêncio que me receberam pressenti que havia algo errado mas me convenci que poderia estar enganada, fiz a chamada, registrei o conteúdo da aula no diário de classe e munida das ferramentas que dispunha, uma régua e um esquadro de madeira comecei a aula....aí veio o martírio, enquanto estava de costas começou um gemido baixinho que não identifiquei bem à princípio e fingi não me incomodar dando continuidade a explicação, mas o gemido persistiu agora um pouco mais alto, me virei e com olhar fuzilante de reprovação tentei identificar o meliante deixando claro que não aprovava a situação, retornei ao quadro negro e a gemeção ficou mais explícita, mais intensa, identificando com mais clareza do que se tratava, era inacreditável que aquilo estivesse acontecendo comigo, tentei ignorar mais uma vez, quem sabe a brincadeira sem graça se esgotasse por si, mas não foi o que sucedeu, a gemeção e a respiração ofegante cada vez mais alta foi se intensificando tremi, o esquadro já não se encaixava na mão, estava confusa, envergonhada sem saber como agir, era muita petulância, me virei furiosa querendo explodir, respirei fundo e com as duas mãos apoiadas sobre a mesa os desafiei : haveria ali homem suficiente que além da gemeção pudesse se apresentar e pedir desculpas ?! Todos me olharam em silêncio, ninguém se apresentou, havia um cinismo no ar, todos estavam mancomunados, desisti de dar continuidade a matéria, me sentei de frente pra sala e agora era eu que permanecia em silêncio, fitando-os indignada, na minha cabeça a única coisa que me ocorria era como o Sidney Poitier havia conseguido, me senti um zero à esquerda, grandíssimos filhos da puta !

 



 


quarta-feira, 17 de março de 2021

"Tempo de Escola"

 Juro que eu pensei que minha memória fosse boa e descobri que não é.

Eu não sei como se chama isto, se é coincidência ou se atraímos as coisas de acordo com nosso estado de espírito, nossas vibrações ou sei lá o quê ?

Ontem quis postar uma foto minha com meu pai e foi difícil encontrar, sou de uma época em que as fotos eram raras, aí encontrei uma, estávamos dançando no meu baile de formatura, foto ainda em branco e preto e aleatoriamente postei no meu Instagram.

Quando foi à noite, um pouco antes de dormir, recebi uma mensagem de uma amiga minha do tempo do ginásio me dizendo que o nosso baile de formatura havia  acontecido neste mesmo dia.

Devo admitir que esta minha amiga tem mesmo uma memória de elefante ! Lembrar de uma data aparentemente irrelevante.

Não sei se foi coincidência ou se minha mente já estava voltada para estas relembranças, fato é que também estou às voltas com um livro de crônicas de alguns autores brasileiros que narram este período que fez e ainda faz parte da vida das pessoas que é o tempo de escola.

O tempo de escola é a melhor fase da vida ! É a fase do aprendizado, da construção da personalidade, da solidificação das amizades, da fé no futuro que sempre nos aguarda com aquele ponto enorme de interrogação, dos amores platônicos, do primeiro namorado, do primeiro beijo...

Relembrar dos nossos mestres, nossos amigos, os que se perderam e os que se mantiveram ao longo dos anos, relembrar dos nossos pais cheios de preocupações e compromissos e a gente nem se dava conta do quão jovens eles eram, a gente só pensava e sonhava com o grande baile de formatura... ah saudade apertada !

Pensa se não é uma grande bobagem querer participar de uma formatura de ginásio, pensa... foi tão sacrificado pagar aquela formatura pra mim, pra que eu não ficasse por baixo de ninguém, pra que eu me sentisse feliz e eles orgulhosos da minha conquista...cara que conquista ? eu tinha terminado a oitava série, conquistamos o quê com o ensino fundamental ?!!...mas era moda e mergulhávamos de cabeça nessas babaquices, mas sabe, se não houvesse acontecido o baile a foto em preto e branco não existiria e a minha amiga não teria me lembrado deste dia cuja importância está na memória do orgulho que meus pais sentiram de mim.



16 de março de 1975


segunda-feira, 15 de março de 2021

"A Chuva que Não Choveu"

 Hoje 15 de março.

É um dia normal pra você ?

Que bom !

Pra mim não é.

Eu e aquela velha mania de memorizar datas, de reviver acontecimentos...

Ontem à noite fui deitar cedo e quem disse que consegui dormir ? Me revirei na cama centena de vezes esperando ansiosa sabe Deus lá o quê ? Talvez esperasse a meia noite, o dia quatorze virar dia quinze, e por quê ?! Como se alguma coisa fosse mudar junto com os ponteiros do relógio... o dia virou e nada absolutamente nada mudou.

É triste ter um dia triste pra lembrar...

Aquele pingo grosso de chuva que caiu na minha testa ao mesmo tempo que lhe caía também, aquele pingo dissimulado e enganoso nos pregou uma peça e mudou por completo nosso destino.

O céu se cobriu de nuvens negras, carregadas, pesadas, nuvens que se moviam com o vento, levantando a saia, bagunçando os cabelos, movimentando as folhas e os objetos da rua, tudo tão rápido... num estalo tudo mudou, depois do tiro o mundo parou, a chuva não veio, o vento cessou, silêncio...

Musa chora, e chora tanto que a chuva virou tempestade, não por fora mas por dentro, por fora nem uma lágrima, nem mais uma gota, ou duas, nenhuma chuva... por dentro o desespero...

Passaram-se vinte anos daquele 15 de março de 2001,,, passou é passado,,, não, não é, não para mim, não para nós... e pode passar outros vinte anos vou continuar sentindo o pingo na testa daquela maldita chuva que não veio....