quinta-feira, 24 de maio de 2018

"A menina de olhos escuros"

Precisava trabalhar para ajudar no orçamento doméstico, o dinheiro que ganhava dando aulas não era muito, mesmo assim era necessário, conseguíamos guardar o que sobrava apenas quando sobrava e era tão difícil sobrar !

O que me deixava frustrada era a falta de dinheiro para o meu imediatismo, aprendi a viver sem o supérfluo, e quase tudo era supérfluo, costurava nossas próprias roupas e caprichávamos na comida caseira para não gastar  comendo fora de casa.

Vivia  desanimada  pela falta de perspectiva constante.

O aluguel da casa que morávamos consumia boa parte do nosso salário e o sonho da casa própria estava  tão distante que parecia algo impossível de se alcançar, um sonho que jamais iria se concretizar.

 Me sentia triste mas tinha que disfarçar pra ninguém perceber a minha tristeza, principalmente para os meus pais e meus filhos, para eles estava tudo sempre bem, só que as vezes a correnteza era mais forte que eu, as forças minavam, e mesmo sem querer deixava transparecer.

E assim procurava levar a minha vida da melhor forma possível dentro da minha rotina como professora, dona de casa, mãe e esposa sempre me dividindo em mil.

Naquele dia...

...na primeira hora aula, no silêncio da manhã observei a sala de aula como um todo, trinta e cinco crianças sonolentas aguardavam minhas ordens.

Em pé recostada à mesa fiquei olhando para o jardim através das grandes janelas de vidro, senti uma tristeza que fazia par com o dia nublado e chuvoso, por alguns instantes fiquei dividida entre as abstrações dos meus pensamentos e as responsabilidades que forçosamente me devolvia a razão.

Toda aquela situação era nova para mim, caí de para-quedas numa sala de aula com crianças não alfabetizadas tentando ensinar artes sem estar preparada, sem metodologia sem nada, precisava achar uma fórmula e muito mais que eles era eu que tinha muito o que aprender.

Ah! se eles colaborassem ! Ficaríamos todos ali abstraídos em nossos pensamentos e passaríamos os quarenta e cinco minutos restantes da aula sem nada a fazer ou pensar num estado de meditação profunda. Doce ilusão ! numa sala de aula isso jamais aconteceria !

Para piorar minha situação as lembranças de uma noite mal dormida não me deixava raciocinar, não me sentia inteira, ali apenas metade de mim, a outra metade era um zumbi, foi quando reparei que um par de olhos escuros me fixavam insistentemente, era uma aluna que da sua carteira me fitava com seu olhar vago e profundo.

Aquele encontro silencioso pesou no meu peito, vi em seus olhos os olhos de súplica de meu filho noite adentro, suas mãozinhas postas em meu queixo implorando aos prantos que não o deixasse na creche, o seu choro baixinho me despedaçou inteira... cochichava em seu ouvido tentando acalmá-lo e fazê-lo dormir : "mamãe vai pensar..."

Tudo me doía, sabia que ele iria para a creche, sabia que eu estaria na sala de aula e sabia também que a única coisa que não podia fazer naquele momento era mentir para o meu filho... então "mamãe iria pensar..."

O silêncio foi interrompido por uma voz tímida pedindo para se aproximar :"professora posso ir aí ?"

Era a menina de olhos escuros.

Trouxe sua cadeira para perto da minha e enquanto a sala ainda colaborava, começamos timidamente a conversar.

Mal escutava sua voz e as perguntas que fazia eram respondidas com um balançar de cabeça.

Me contou que não tinha pai e não sabia quem era sua mãe, era a primeira vez que saía do orfanato de meninas que ficava na mesma rua da escola, apontou para as amiguinhas da sala que viviam situação semelhante.

Dei-lhe papel e lápis e pedi que me fizesse um desenho, qualquer desenho, podia desenhar o que quisesse, obediente e compenetrada, soltou a mão em alguns rabiscos sem forma, sem sentido.

Com seus olhos escuros afundados na folha de papel reparei no seu cabelo loiro, curto e ralo, desmazelado pela falta de cuidado e cheio de lêndeas pela pouca higiene, desejei tocá-los mas evitei.

Toda aquela carência me pesou... a da menina de olhos escuros... a de meu filho implorando pra ficar...

O sinal bateu, enxuguei as lágrimas, me despedi com um "até breve"... continuei pesada e saí...

A vida segue e precisava desesperadamente buscar meu filho na creche...



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