As vezes as lembranças chegam da maneira mais estranha.
Saí para passear com os cães e no meio fio da calçada me deparei com uma folha chamada espada de São Jorge, se vê que algum vizinho deve ter feito uma poda no jardim e um pedaço da planta ficou pelo caminho (meu caminho), imediatamente lembrei de dona Clarice.
Dona Clarice era professora titular do "Grupo Escolar Prof. Theodoro de Moraes", onde concluí o curso Primário. Ao olhar de uma criança sua aparência era bem esquisita, dona Clarice era alta, bem alta, e sua magreza aflitiva, sua pele era escura mas não era negra, seus cabelos na altura do pescoço lhe cobriam as orelhas, eram escuros e encaracolados, mas o mais engraçado era a boca, não sei se devido a magreza era chupada e pra dentro e ela falava estranho, muito rápido, meio que atropelando as palavras, andava de salto saia e lenço no pescoço, exalava talco ou perfume, não sei, mas cheirava bem, também não sei por quê sempre relacionei a aparência da dona Clarice a galinha de Angola, não por maldade mas por semelhança mesmo.
Além de professora da quarta série primária, dona Clarice era grande amiga de meu pai, o que não nos trazia nenhuma vantagem, ao contrário, segundo suas ordens podíamos ser castigadas se não cumpríssemos com nossa obrigação.
Naquela época o curso primário finalizava na quarta série e passar pelas mãos da temida dona Clarice era certeza mais do que absoluta.
Minha irmã mais velha foi a primeira a passar pela temível experiência.
Tudo transcorria dentro das normalidades visto que minha irmã era muito mais inteligente do que eu, até que um dia dona Clarice solicitou que ela fosse ao quadro negro escrever um texto, muito obediente e com o giz em mãos começou a escrever o que a professora ditava, contudo pela falta de experiência, suas letrinhas que acompanhavam a altura dos olhos foram subindo desapercebidamente até que se viu na pontinha dos pés tentando terminar a frase que lhe fora ditada, foi quando sentiu, assustada, uma chicoteada nas pernas, era dona Clarice que a repreendia com uma folha de espada de São Jorge nas mãos. Não sei se minha irmã chorou mas acredito que deva ter se sentido muito envergonhada, também não me lembro se fiquei sabendo desta história por minha irmã ou se a própria dona Clarice contou para o meu pai, o que ficou dentro de mim foi uma mistura de revolta com um medo danado de chegar à quarta série e também ser humilhada.
Bem, passei pela dona Clarice sem incidentes, no meu diploma de quarta série a nota média foi razoável, nunca fui boa aluna como minha irmã e graças á Deus nunca me pediram para escrever na lousa, o vaso com água que acomodava as Espadas de São Jorge fazia parte da decoração da sala de aula, marca registrada da dona Clarice que frequentava o Centro de Umbanda com meu pai, adivinha de onde vinham as espadas de São Jorge ?!
Pois então, aquele ano foi seu último ano como professora no Grupo Escolar, logo em seguida se aposentou, dizem, e eu acredito, que, por ser seu último ano, ela afrouxou, que sorte a minha !
Espadas de São Jorge sempre me lembrarão de Dona Clarice.
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