Queria muito contar uma história.
Uma história que não é minha.
Era uma vez um casal que se conheceram e se casaram na década de 50.
João e Luzia.
João era meio irmão de meu pai, tiveram algum contato na infância mas a vinda da família para São Paulo os separou, João continuou vivendo em Minas Gerais onde conheceu Luzia e se casou.
Luzia era uma jovem negra, muito bonita e muito pobre e se apaixonou por João.
Tiveram quatro filhos mestiços, meus primos.
Júlio Cesar, Maria Elisa, Maria Cristina e a raspinha do tacho, Marco Antonio.
Os vi pela primeira vez ainda pequena quando nossa família se reencontrou por obra do acaso.
Naquela época, década de 60, meu pai viajava de vez em quando com o Circo para se apresentar como lutador de "Luta Livre", Telecatch e foi através de um anúncio que Luzia o reconheceu e reaproximou os irmãos.
Foi assim que conheci a "Família Coelho" e muitas de suas histórias.
Uma delas faz referência aos filhos do casal, um episódio tão triste que marcou a minha memória de menina.
Eles viveram um tempo no interiorzão de Minas Gerais, no meio do mato literalmente, onde não havia água encanada e Luzia tinha que se deslocar até o rio próximo a casa para lavar as roupas da família nas pedras e água corrente.
Deu-se que a filha mais nova, apelidada de "Neguinha" dormia no seu bercinho humilde com colchãozinho de palha e na ausência da mãe, Júlio Cesar muito criança também, resolveu brincar com fósforos embaixo do berço da menina. Daí vocês já podem imaginar o que aconteceu, o berço pegou fogo, mas felizmente Luzia chegou a tempo para contê-lo e salvar a filha que teve boa parte de um dos braços queimado.
História triste mas o mais triste mesmo se deu depois, Luzia culpou o filho pelo ocorrido e nunca mais o perdoou.
Quando nos tornamos adolescentes fomos convidados eu e meu irmão a passar as férias em Minas com a família, nessa altura eles já haviam progredido na vida, moravam numa casa grande e espaçosa em Belo Horizonte e aproveitamos a oportunidade para conhecê-los melhor.
Júlio Cesar era muito calado, quase não participava das nossas conversas, estava sempre de lado observando, era um jovem moreno muito bonito mas muito sério, seu semblante era triste.
Maria Elisa tinha pose, magra, esguia, com uma beleza incomum, loira, pele bem clara, olhos claros de um verde quase transparente, mas havia duas coisas que a incomodavam muito, o nariz abatatado de negro e o cabelo loirinho pixaim.
Neguinha era uma perfeição de tão bonita, alta, pele bronzeada, feições delicadas, cabelos negros, volumosos, sedosos e lisos, mas tinha o defeito no braço, já havia feito várias cirurgias reparadoras mas o complexo persistiu, era tratada diferente dos outros filhos por isso era muito mimada e dengosa.
O caçula apelidado de Pepeto era o mais desencanado de todos, um menino alegre e feliz, parecia a réplica diminutiva do tio João de tão iguais.
Durante nossa estadia houve um episódio marcante.
Estávamos todos reunidos no quarto das meninas quando surgiu uma conversa boba sobre racismo.
Meu irmão caiu na besteira de dizer que meu pai era racista, e o meu pai era mesmo racista, não sei em que grau, mas era, mesmo sendo neto de escravo alforriado com a "Lei do Ventre Livre".
Foi quando Júlio até então aquela pessoa calada e sombria resolveu se manifestar dizendo que também era racista.
O que ninguém esperava era que tia Luzia estava próxima ouvindo nossa conversa.
Daí o caldo entornou, houve uma briga dos diabos.
Tia Luzia dizia que Júlio não deveria se pronunciar daquele jeito porque também era negro e aos berros totalmente transtornado ele bradava que ele podia ser preto mas que odiava os negros.
Aquela cena foi horrível, Júlio Cesar saiu bufando, batendo as portas, gritando a frase "odeio preto!" repetidas vezes, enquanto a tia caía aos prantos desiludida.
Nunca vou me esquecer !
Era uma família cheia de preconceitos, culpas e traumas.
Tia luzia quando vinha nos visitar nunca era objetiva, tinha um jeito mineiro de falar cantado, sempre sugerindo a maldade entre os dentes, era uma pessoa infeliz e deixava transparecer suas mágoas, sua tristeza, enfim...
Crescemos, nos vimos adultos e cada qual seguiu sua vida.
Júlio Cesar nunca se casou, caiu no vício da bebida e muito novo ainda foi encontrado morto numa sarjeta qualquer de Belo Horizonte.
Elisa também não se casou, se formou em enfermagem, morou em outros países, afinou o nariz e alisou os cabelos.
Neguinha se casou, teve dois filhos e uma vida bem sucedida, morou muitos anos na Alemanha, hoje vive no Rio de Janeiro.
Pepeto escapou de todas, vive no sul, casou, separou teve filhos, e aparentemente vive de bem com a vida.
Tia Luzia faleceu há alguns anos.
Eu e minha mãe chegamos a visitá-los um pouco antes dela ficar doente.
A casa era a mesma e já não era tão bonita e tão grande, acho que cresci e a casa diminuiu.
Moravam apenas os dois e só pra variar um pouquinho, outro episódio me chamou a atenção.
Entramos no quarto do casal onde tio João estava sentado assistindo televisão, e entre os cumprimentos e assuntos, tia Luzia pousou a mão sobre o ombro do marido, foi quando ele nos disse :"-Estão vendo ? Havia anos ela não encostava a mão em mim".
Aquelas palavras nos deixou sem graça, mas além de sem graça fiquei sim foi muito triste.
As mágoas e os ressentimentos os afastaram, viveram na mesma casa mas eram dois estranhos infelizes.
Alguns anos após a morte de tia Luzia, tio João também veio a falecer.
Fiquei triste com a notícia, tio João lembrava muito meu pai no jeito de falar, fiquei com a sensação que o último elo da família havia partido para sempre, não há mais ninguém, entende ?
Aí eu reflito e penso... essa história realmente não é minha, mas há episódios em que me assisto.
Tão triste, não é ?!
Uma história que não é minha.
Era uma vez um casal que se conheceram e se casaram na década de 50.
João e Luzia.
João era meio irmão de meu pai, tiveram algum contato na infância mas a vinda da família para São Paulo os separou, João continuou vivendo em Minas Gerais onde conheceu Luzia e se casou.
Luzia era uma jovem negra, muito bonita e muito pobre e se apaixonou por João.
Tiveram quatro filhos mestiços, meus primos.
Júlio Cesar, Maria Elisa, Maria Cristina e a raspinha do tacho, Marco Antonio.
Os vi pela primeira vez ainda pequena quando nossa família se reencontrou por obra do acaso.
Naquela época, década de 60, meu pai viajava de vez em quando com o Circo para se apresentar como lutador de "Luta Livre", Telecatch e foi através de um anúncio que Luzia o reconheceu e reaproximou os irmãos.
Foi assim que conheci a "Família Coelho" e muitas de suas histórias.
Uma delas faz referência aos filhos do casal, um episódio tão triste que marcou a minha memória de menina.
Eles viveram um tempo no interiorzão de Minas Gerais, no meio do mato literalmente, onde não havia água encanada e Luzia tinha que se deslocar até o rio próximo a casa para lavar as roupas da família nas pedras e água corrente.
Deu-se que a filha mais nova, apelidada de "Neguinha" dormia no seu bercinho humilde com colchãozinho de palha e na ausência da mãe, Júlio Cesar muito criança também, resolveu brincar com fósforos embaixo do berço da menina. Daí vocês já podem imaginar o que aconteceu, o berço pegou fogo, mas felizmente Luzia chegou a tempo para contê-lo e salvar a filha que teve boa parte de um dos braços queimado.
História triste mas o mais triste mesmo se deu depois, Luzia culpou o filho pelo ocorrido e nunca mais o perdoou.
Quando nos tornamos adolescentes fomos convidados eu e meu irmão a passar as férias em Minas com a família, nessa altura eles já haviam progredido na vida, moravam numa casa grande e espaçosa em Belo Horizonte e aproveitamos a oportunidade para conhecê-los melhor.
Júlio Cesar era muito calado, quase não participava das nossas conversas, estava sempre de lado observando, era um jovem moreno muito bonito mas muito sério, seu semblante era triste.
Maria Elisa tinha pose, magra, esguia, com uma beleza incomum, loira, pele bem clara, olhos claros de um verde quase transparente, mas havia duas coisas que a incomodavam muito, o nariz abatatado de negro e o cabelo loirinho pixaim.
Neguinha era uma perfeição de tão bonita, alta, pele bronzeada, feições delicadas, cabelos negros, volumosos, sedosos e lisos, mas tinha o defeito no braço, já havia feito várias cirurgias reparadoras mas o complexo persistiu, era tratada diferente dos outros filhos por isso era muito mimada e dengosa.
O caçula apelidado de Pepeto era o mais desencanado de todos, um menino alegre e feliz, parecia a réplica diminutiva do tio João de tão iguais.
Durante nossa estadia houve um episódio marcante.
Estávamos todos reunidos no quarto das meninas quando surgiu uma conversa boba sobre racismo.
Meu irmão caiu na besteira de dizer que meu pai era racista, e o meu pai era mesmo racista, não sei em que grau, mas era, mesmo sendo neto de escravo alforriado com a "Lei do Ventre Livre".
Foi quando Júlio até então aquela pessoa calada e sombria resolveu se manifestar dizendo que também era racista.
O que ninguém esperava era que tia Luzia estava próxima ouvindo nossa conversa.
Daí o caldo entornou, houve uma briga dos diabos.
Tia Luzia dizia que Júlio não deveria se pronunciar daquele jeito porque também era negro e aos berros totalmente transtornado ele bradava que ele podia ser preto mas que odiava os negros.
Aquela cena foi horrível, Júlio Cesar saiu bufando, batendo as portas, gritando a frase "odeio preto!" repetidas vezes, enquanto a tia caía aos prantos desiludida.
Nunca vou me esquecer !
Era uma família cheia de preconceitos, culpas e traumas.
Tia luzia quando vinha nos visitar nunca era objetiva, tinha um jeito mineiro de falar cantado, sempre sugerindo a maldade entre os dentes, era uma pessoa infeliz e deixava transparecer suas mágoas, sua tristeza, enfim...
Crescemos, nos vimos adultos e cada qual seguiu sua vida.
Júlio Cesar nunca se casou, caiu no vício da bebida e muito novo ainda foi encontrado morto numa sarjeta qualquer de Belo Horizonte.
Elisa também não se casou, se formou em enfermagem, morou em outros países, afinou o nariz e alisou os cabelos.
Neguinha se casou, teve dois filhos e uma vida bem sucedida, morou muitos anos na Alemanha, hoje vive no Rio de Janeiro.
Pepeto escapou de todas, vive no sul, casou, separou teve filhos, e aparentemente vive de bem com a vida.
Tia Luzia faleceu há alguns anos.
Eu e minha mãe chegamos a visitá-los um pouco antes dela ficar doente.
A casa era a mesma e já não era tão bonita e tão grande, acho que cresci e a casa diminuiu.
Moravam apenas os dois e só pra variar um pouquinho, outro episódio me chamou a atenção.
Entramos no quarto do casal onde tio João estava sentado assistindo televisão, e entre os cumprimentos e assuntos, tia Luzia pousou a mão sobre o ombro do marido, foi quando ele nos disse :"-Estão vendo ? Havia anos ela não encostava a mão em mim".
Aquelas palavras nos deixou sem graça, mas além de sem graça fiquei sim foi muito triste.
As mágoas e os ressentimentos os afastaram, viveram na mesma casa mas eram dois estranhos infelizes.
Alguns anos após a morte de tia Luzia, tio João também veio a falecer.
Fiquei triste com a notícia, tio João lembrava muito meu pai no jeito de falar, fiquei com a sensação que o último elo da família havia partido para sempre, não há mais ninguém, entende ?
Aí eu reflito e penso... essa história realmente não é minha, mas há episódios em que me assisto.
Tão triste, não é ?!
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